sexta-feira, 7 de junho de 2013

Jovem que escreve de cabeça para baixo procura ajuda


Fernanda não consegue um diagnóstico sobre sua dificuldade
Notícia publicada na edição de 07/11/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 12 do caderno A - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.
Daniela Jacinto
daniela.jacinto@jcruzeiro.com.br

Há duas semanas, uma jovem de Itapetininga veio até o jornal Cruzeiro do Sul com uma grande esperança: descobrir por que escreve de cabeça para baixo. Fernanda Pires de Almeida, 22 anos, conta que já passou por consulta com diversos especialistas como oftalmologista, neurologista e psicóloga, mas até agora não conseguiu ter exatamente um diagnóstico de seu caso. Ela afirma que durante toda a sua vida escolar foi auxiliada pelos professores, que emprestavam o livro usado em sala de aula para que pudesse copiar o conteúdo passado na lousa, isso porque além de escrever, ela também lê invertido, e quando tenta forçar a visão para ler aquilo que está escrito de forma convencional, sente dor de cabeça e os olhos começam a embaçar. 

Fernanda lembra que aprendeu a ler e a escrever sozinha, aos seis anos de idade, porém de forma invertida. Ela escreve com a mão direita e tem uma letra muito bonita e caprichada, porém ao contrário das normas estabelecidas, faz isso da direita para a esquerda e de cabeça para baixo. "Sempre fui uma boa aluna, mas o problema é que alguns professores não passam os conteúdos e por causa disso cheguei a repetir de ano. Estou no segundo colegial agora, mas desisti porque novamente tem um professor que não passa o livro para que eu possa copiar a matéria. Queria continuar estudando, mas não estou conseguindo por causa disso, então saí da escola e resolvi ir atrás do meu sonho: quero descobrir o que é que eu tenho", disse.

Tudo o que Fernanda quer é escrever e ler como todas as outras pessoas. "É isso o que quero, é tudo o que eu quero nessa vida", acrescentou, esperançosa. Quando força um pouco para escrever de forma convencional, as palavras saem de forma espelhada (chama-se assim porque é possível ler corretamente se o papel for colocado diante de um espelho). Veio de Itapetininga a Sorocaba apenas com uma mochila, porém foi assaltada nas imediações da rodoviária e ficou sem nada, apenas com a roupa do corpo. Fernanda foi informada sobre hospedagem aqui na cidade e dessa forma permaneceu uma semana abrigada no albergue público do Serviço de Obras Sociais (SOS).

Procurou a reportagem em busca de ajuda, porém para seu caso seria necessário passar por consulta com neurologista e várias sessões com um profissional da área da psicopedagogia, mas como a vaga no albergue é de até uma semana, Fernanda afirmou que não seria possível ficar na cidade o tempo suficiente para ser diagnosticada e lamentou a situação. Esta matéria, portanto, não retrata o caso específico dela, mas discorre sobre o problema de forma geral e levanta algumas hipóteses com relação ao tema, já que apesar de rara, algumas pessoas apresentam essa característica.

Escrita espelhada ocorre na alfabetização
Escrever de cabeça para baixo ou de forma espelhada faz parte do processo natural de aprendizagem de uma criança em fase de alfabetização, conforme explica Patrícia Carneiro Olmedo, professora de graduação e pós-graduação na área da Alfabetização e Língua Portuguesa, mestre em Psicologia Escolar e docente de Língua Portuguesa do Colégio Uirapuru. "A escrita espelhada ou especular é esperada no início do processo de alfabetização, é uma fase em que a criança inverte a posição convencional das letras e números e pode acontecer também que ela escreva de cabeça para baixo, mas é um processo passageiro", esclarece.

Conforme Patrícia, existe uma outra aprendizagem, que é concomitante à da escrita, porém fundamental nesse processo: trata-se do desenvolvimento da lateralidade, que é uma das áreas da psicomotricidade, responsável pelos movimentos do corpo. "A dominância lateral faz com que o cérebro manifeste maior destreza com um dos lados, direito ou esquerdo, ou ainda os dois, que é o caso do ambidestro", explica a professora. 

Isso acontece em torno dos cinco anos. "Logo após, a criança vai aprender noções de direita e esquerda, que devem ser trabalhadas, ensinadas, por isso a criança precisa dos estímulos do meio, de um currículo competente no final da Educação Infantil e início do Ensino Fundamental, porque quando ela ainda não tem noção de direita e esquerda é comum que confunda os lados das letras, por isso que espelha", acrescenta Patrícia. A escrita especular pode ocorrer até uns 7 anos, ou no máximo 8 anos de idade. "Uma criança que não aprende noção de direita e esquerda vai ter dificuldade para saber que a leitura e escrita acontece da esquerda para a direita, e que existe uma direção lateral da escrita", completa.

Para auxiliar a criança nesse processo, o educador deve trabalhar com atividades corporais: brincadeiras como amarelinha, cinco marias, escravos de Jó e pular corda. Além da lateralidade, a psicomotricidade envolve áreas como o tônus muscular, o equilíbrio, a estruturação corporal, a praxia global e a praxia fina (que é a coordenação motora fina, responsável pelo movimento das mãos e que ajuda na habilidade da escrita). Conforme a professora, esse não seria o caso de Fernanda, a jovem mencionada no início desta reportagem. "O caso dela não está relacionado à escrita especular da infância, ela pode ter um distúrbio neurológico ou da lateralidade, precisaria de um trabalho mais elaborado para saber exatamente do que se trata. Ela teria de passar com um neurologista porque na vida adulta continuar com a escrita especular já ocasiona em um distúrbio, então teria de procurar um especialista para dar uma olhada nisso", afirma.

O cérebro tenta solucionar as dificuldades
Conforme o médico neurologista Sandro Blasi Esposito, da Faculdade de Medicina da PUC Sorocaba, o tema é complexo e merece um estudo detalhado. Sandro afirma que conheceu um caso como esse há dez anos, de uma menina de Sorocaba que tinha por volta de 10 anos de idade. Foi indicado que fosse até São Paulo para ter seu caso estudado por especialistas, mas na época ela não quis. "Ocasionalmente aparecem essas situações, mas é raro, não é comum", afirma.

O neurologista observa que o cérebro é de uma riqueza extraordinária, tem um potencial gigantesco, então quando aparece alguma dificuldade, ele cria caminhos e tenta solucionar. "Nada que 100 bilhões de neurônios não justifiquem. Cada um tem uma leitura de mundo, tem muita coisa diferente por aí e a visão se adapta às nossas necessidades", diz.

Em um caso como o de Fernanda, que escreve de cabeça para baixo, o médico lembra que a primeira coisa a ser analisada é que os próprios olhos invertem a imagem, como acontece com uma câmera fotográfica. "A imagem da retina é invertida e o cérebro tem de recompor, reconstruir essa imagem, colocando na posição correta", esclarece, então pode ser que esse seja um ponto que tenha de ser observado mais atentamente em Fernanda. 

Outro detalhe é que a maior parte da população é destra, ou seja escreve com a mão direita e no sentido da esquerda para a direita. É assim que as palavras são apresentadas ao cérebro, porque são pessoas com maior dominância do hemisfério esquerdo. Já algumas pessoas, no entanto, são canhotas, porque apresentam maior dominância do hemisfério direito, e nesse caso essa habilidade é genética. "Tem também as ambidestras, que têm habilidades com ambas as mãos, direita e esquerda e nesse caso essa habilidade é desenvolvida pela pessoa, como o fez o famoso pintor e cientista Leonardo da Vinci, que não tinha nenhum problema neurológico", comenta.

No caso de Fernanda, o que pode ter ocorrido é alguma disfunção no hemisfério esquerdo ou direito do cérebro. "Ou ainda fatores genéticos podem ter ocasionado essa escrita, mas o curioso é que a escrita espelhada é mais comum acontecer com quem tem dominância para ser canhoto. De qualquer forma, deixando de lado o caso específico dessa moça, o fato é que existe a possibilidade de treinar o hemisfério que não está habituado, aliás muitos defendem que desenvolver a ambidestria e explorar os outros aspectos da nossa mente que a gente normalmente não explora é bom para o cérebro."

'Pode ser que escreva para o outro e não para si'

Para Delia María De Césaris psicopedagoga, psicanalista e doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano na USP, o caso de Fernanda é singular, atípico e teria muito o que ser avaliado. "É claro que sem deixar de levar em conta a significação que tem para o sujeito esse tipo de escrita. Não podemos esquecer dos aspectos subjetivos, porque senão corremos o risco de cair na padronização e com isso apagamos totalmente o sujeito", observa.

Conforme Delia, é possível levantar algumas hipóteses, porém não dá para analisar especificamente o caso de Fernanda sem conhecê-la e fazer algumas entrevistas com ela. "Pode ser, por exemplo, que uma pessoa que escreve dessa forma escreva para o outro e não para si. Essa é uma interpretação psicanalítica, quando se observa o que está colocando o sujeito nessa escrita, o que o diferencia. Por isso que afirmo não ser possível fazer um diagnóstico sem escutar essa moça, mas esse é um traço singular na escrita", diz, acrescentando que é possível também que uma pessoa que queira desenvolver essa habilidade treine e consiga. "Mas para adquirir uma habilidade dessas através do treino tem de ter uma coordenação neuromotora e uma inteligência espacial bem desenvolvidas."

A área da psicopedagogia contribui não só para verificar um transtorno funcional que teria de ser corrigido, como também para fazer uma leitura dessa dificuldade como um sintoma. "Sem pensar previamente que podemos corrigir isso. Hoje a sociedade quer corrigir muito rápido sem ver qual é a maneira particular, singular, que a pessoa está expressando por meio desse sintoma. Isso tem de servir de início, como uma chamada de atenção, e não para apagar imediatamente. Não podemos padronizar os comportamentos."

Delia observa que o sofrimento de Fernanda chegou a tal ponto que ela que recorreu a um jornal, um meio de comunicação, para conseguir ajuda. "Veja novamente a minha observação, há um sujeito que quer ser escutado e a via que foi pedir ajuda é um jornal, um órgão que trabalha com a escrita, justamente o ponto que incomoda essa jovem."

Nenhum comentário:

Postar um comentário